Orora analfabeta

sexta-feira, 5 de março de 2010

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Eu arranjei lá uma dona boa lá em Cascadura
Grande criatura mas não sabe ler
Nem tampouco escrever
Ela é bonita, bem feita de corpo
E cheia da nota
Mas escreve gato com "j"
E escreve saudade com "c"
Ela disse outro dia que estava doente
Sofrendo de estrombo
Lavei um tombo...caí durinho para trás
Isso sim já e demais!
Ela fala "aribú", "arioprano" e "motocicreta"
Diz que adora feijoada "compreta"
Ela é errada demais
Vi uma letra "O" bordada na blusa
Falei é agora
Perguntei o seu nome
Ela disse é "Orora"
E sou filha do "Arineu"
O azar é todo meu...


    Gordurinha e Nascimento Gomes

Não tem tradução

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O cinema falado é o grande culpado da transformação
Dessa gente que sente que um barracão prende mais que o xadrez
Lá no morro, seu eu fizer uma falseta
A Risoleta desiste logo do francês e do Inglês
A gíria que o nosso morro criou
Bem cedo a cidade aceitou e usou
Mais tarde o malandro deixou de sambar, dando pinote
Na gafieira dançar o Fox-Trote
Essa gente hoje em dia que tem a mania da exibição
Não entende que o samba não tem tradução no idioma francês
Tudo aquilo que o malandro pronuncia
Com voz macia é brasileiro, já passou de português
Amor lá no morro é amor pra chuchu
As rimas do samba não são I love you
E esse negócio de alô, alô boy e alô Johnny
Só pode ser conversa de telefone..

                     Noel Rosa

Metáfora

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Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível

Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível

Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível

Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora

                        Gilberto Gil

Palavra cantada

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O substantivo
É o substituto do conteúdo


O adjetivo
É a nossa impressão sobre quase tudo


O diminutivo
É o que aperta o mundo
E deixa miúdo


O imperativo
É o que aperta os outros e deixa mudo


Um homem de letras
Dizendo ideias
Sempre se imflama


Um homem de ideias
Nem usa letras
Faz ideograma


Se altera as letras
E esconde o nome
Faz anagrama


Mas se mostro o nome
Com poucas letras
É um telegrama


Nosso verbo ser
É uma identidade
Mas sem projeto


E se temos verbo
Com objeto
É bem mais direto


No entanto falta
Ter um sujeito
Pra ter afeto


Mas se é um sujeito
Que se sujeita
Ainda é objeto


Todo barbarismo
É o português
Que se repeliu


O neologismo
É uma palavra
Que não se ouviu


Já o idiotismo
É tudo que a língua
Não traduziu


Mas tem idiotismo
Também na fala
De um imbecil





           Sandra Peres / Luiz Tatit

Sintaxe à vontade

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"Sem horas e sem dores
Respeitável público pagão
Bem vindo ao teatro mágico!
sintaxe à vontade..."

Sem horas e sem dores
Respeitável público pagão
a partir de sempre
toda cura pertence a nós
toda resposta e dúvida
todo sujeito é livre para conjugar o verbo que quiser
todo verbo é livre para ser direto ou indireto
nenhum predicado será prejudicado
nem tampouco a vírgula, nem a crase nem a frase e ponto final!
afinal, a má gramática da vida nos põe entre pausas, entre vírgulas
e estar entre vírgulas é aposto
e eu aposto o oposto que vou cativar a todos
sendo apenas um sujeito simples
um sujeito e sua oração
sua pressa e sua prece
que a regência da paz sirva a todos nós... cegos ou não
que enxerguemos o fato
de termos acessórios para nossa oração
separados ou adjuntos, nominais ou não
façamos parte do contexto da crônica
e de todas as capas de edição especial
sejamos também o anúncio da contra-capa
mas ser a capa e ser contra-capa
é a beleza da contradição
é negar a si mesmo
e negar a si mesmo
é muitas vezes, encontrar-se com Deus
com o teu Deus
Sem horas e sem dores
Que nesse encontro que acontece agora
cada um possa se encontrar no outro
até porque...


tem horas que a gente se pergunta...
por que é que não se junta
tudo numa coisa só?
Fernando Anitelli (Teatro Mágico)

Vou tirar você do meu dicionário

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Eu vou tirar do dicionário
A palavra você
Vou trocá-la em miúdos
Mudar meu vocabulário
e no seu lugar
vou colocar outro absurdo
Eu vou tirar suas impressões digitais
da minha pele
Tirar seu cheiro
dos meus lençóis
O seu rosto do meu gosto
Eu vou tirar você de letra
nem que tenha que inventar
outra gramática
Eu vou tirar você de mim
Assim que descobrir
com quantos "nãos" se faz um sim
Eu vou tirar o sentimento
do meu pensamento
sua imagem e semelhança
Vou parar o movimento
a qualquer momento
Procurar outra lembrança
Eu vou tirar, vou limar de vez sua voz
dos meus ouvidos
Eu vou tirar você e eu de nós
o dito pelo não tido
Eu vou tirar você de letra
nem que tenha que inventar
outra gramática
Eu vou tirar você de mim
Assim que descobrir
com quantos "nãos" se faz um sim
CANÇÕES PAULISTAS
Interpretação:
VOU TIRAR VOCÊ DO DICIONÁRIO

Itamar Assunção / Alice Ruiz

Meninos e meninas

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Quero me encontrar, mas não sei onde estou
Vem comigo procurar algum lugar mais calmo
Longe dessa confusão e dessa gente que não se respeita
Tenho quase certeza que eu não sou daqui

Acho que gosto de São Paulo
Gosto de São João
Gosto de São Francisco e São Sebastião
E eu gosto de meninos e meninas

Vai ver que é assim mesmo e vai ser assim pra sempre
Vai ficando complicado e ao mesmo tempo diferente
Estou cansado de bater e ninguém abrir
Você me deixou sentindo tanto frio
Não sei mais o que dizer

Te fiz comida, velei teu sono
Fui teu amigo, te levei comigo
E me diz: pra mim o que é que ficou?

Me deixa ver como viver é bom
Não é a vida como está, e sim as coisas como são
Você não quis tentar me ajudar
Então, a culpa é de quem? A culpa é de quem?

Eu canto em português errado
Acho que o imperfeito não participa do passado
Troco as pessoas
Troco os pronomes


Preciso de oxigênio, preciso ter amigos
Preciso ter dinheiro, preciso de carinho
Acho que te amava, agora acho que te odeio
São tudo pequenas coisas e tudo deve passar

Acho que gosto de São Paulo
E gosto de São João
Gosto de São Francisco e São Sebastião
E eu gosto de meninos e meninas
            Renato Russo