Língua

domingo, 28 de fevereiro de 2010

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Esta língua é como um elástico
que espicharam pelo mundo.

No início era tensa,
de tão clássica.
Com o tempo, se foi amaciando,
foi-se tornando romântica,
incorporando os termos nativos
e amolecendo nas folhas de bananeira
as expressões mais sisudas.

Um elástico que já não se pode
mais trocar, de tão gasto;
nem se arrebenta mais, de tão forte.

Um elástico assim como é a vida
que nunca volta ao ponto de partida.

                                                      Gilberto Mendonça Teles

A um poeta

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

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Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço; e a trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua,
Rica mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade,
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.

                                             Olavo Bilac

Língua Portuguesa

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

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Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

                                             Olavo Bilac

Língua

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Gosto de sentir a minha língua roçar
A língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar
A criar confusões de prosódias
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixa os portugais morrerem à míngua
"Minha pátria é minha língua"
─ Fala mangueira!
Fala!

Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode
Esta língua?

Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas
Vamos na velô da dicção choo choo de
Carmen Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E - xeque-mate - explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da
TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homen
Adoro nomes
Nomes em Ã
De coisas como Rã e Ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon Chevalier
Glauco Matoso e Arrigo Barnabé e Maria da
Fé e Arrigo barnabé

Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode
Esta língua?

Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode
Esta língua?

Incrível
É melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível
Filosofar em alemão
Se você tem uma idéia incrível
É melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível
Filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o
Recôncavo
Meu medo!

A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria: tenho mátria
E quero frátria

A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria: tenho mátria
E quero frátria

Poesia concreta e prosa caótica
Ótica futura
Samba -rap, chic-left com banana
Será que ela está no Pão de Açúcar?
Tá craude brô você e tu lhe amo
Qué queu te faço, nego?
Bote ligeiro

Nós canto-falamos como que inveja negros
Que sofrem horrores no gueto do Harlem
Lívros, discos, vídeos à mancheia
E deixe que digam, que pensem e que falem

                          Caetano Veloso

Autopsicografia

domingo, 21 de fevereiro de 2010

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O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

                                               Fernando Pessoa

Poética

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          1                                                           2
          Que é poesia?                    Que é o poeta?
                  uma ilha                           um homem
                  cercada                     que trabalha o poema
           de palavras                      com o suor de seu rosto.
                por todos                               Um homem
                os lados                          que tem fome
                                        como qualquer outro homem.

                                                                                                        Cassiano Ricardo

Horas mortas

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          Breve momento, após comprido dia
          De incômodos, de penas, de cansaço,
          Inda o corpo a sentir quebrado e lasso,
          Posso a ti me entregar, doce Poesia!

          Desta janela aberta à luz tardia
          Do luar em cheio a clarear o espaço,
          Vejo-te vir, ouço-te o leve paso
          Na transparência azul da noite fria.

          Chegas. O ósculo teu me vivifica.
          Mas é tão tarde! Rápido flutuas,
          Tornando logo à etérea imensidade;

          E na mesa a que escrevo apenas fica,
          Sobre o papel ─ rastro das tuas ─ asas
          Um verso, um pensamento, uma saudade.

                                                              Alberto de Oliveira

Os poemas

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Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos    
vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

                                                                                                                      Mário Quintana

Isto

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           Dizem que finjo ou minto
          Tudo que escrevo. Não.
          Eu simplesmente sinto
          Com a imaginação.
          Não uso o coração.

          Tudo o que sonho ou passo,
          O que me falha ou finda,
          É como que um terraço
          Sobre outra coisa ainda.
          Essa coisa é que é linda.

          Por isso escrevo em meio
          Do que não está ao pé,
          Livre do meu enleio,
          Sério do que não é.
          Sentir? Sinta quem lê!

                                     Fernando Pessoa

Procura da poesia

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

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Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espere que cada um se realize e consuma
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


                                                                 Carlos Dummond de Andrade


                             

Uma palavra

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Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer
Tudo.
Anterior ao entendimento, palavra.

Palavra viva
Palavra com temperatura, palavra.
Que se produz
Muda
Feita de luz mais que de vento, palavra.
Palavra dócil
Palavra d'água pra qualquer moldura
Que se acomoda em balde, em verso,
em mágoa
Qualquer feição de se manter palavra.
                                  
Palavra minha
Matéria, minha criatura, palavra
que me conduz
Mudo
E que me escreve desatento, palavra.

Talvez, à noite
Quase-palavra que um de nós murmura
Que ela mistura as letras, que eu invento
Outras pronúncias do prazer, palavra.

Palavra boa
Não de fazer literatura, palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento, palavra.


                         Chico Buarque de Holanda